domingo, outubro 01, 2006

Abaixo a reeleição, viva a repetência

Vá lá. Digamos, como se diz lá no Palácio do Planalto, que roubar, mal ou bem, todos eles roubam. Nem por isso o governo Lula deixa de estar diante de um feito inédito. Entrou na reta final de uma campanha para transformar a maioria absoluta dos brasileiros em cúmplices de tudo o que ele nem percebeu que seus amigos andavam fazendo.

Isso, antes de Lula, ninguém tentou. E ele quer conseguir sem tentar, em primeiro turno, boiando na aliança do conformismo com o desalento. Dar-lhe um segundo mandato em primeiro turno é pior do que confundir indulgência plenária com carta branca. É subverter o próprio Lula, reelegendo-o pelo avessso. Em 2002, ele pelo menos podia dizer que era a cara do povo brasileiro. Agora pretende que o povo brasileiro seja a sua cara, mesmo sem botox na testa, um terno para cada dia do ano, charuto cubano, milhão na poupança e aposentadoria especial.

Se funcionar como ele quer,será a primeira vez na História do Brasil que 126 milhões de pessoas sairiam de cada em plena crise institucional para deixar tudo como estava. Quando seu país quebrou na virada do milênio, os argentinos foram bater panela em praça para gritar aos políticos “que se vão todos”. Dos brasileiros espera-se que digam “que fiquem todos”.

No Brasil não é só a farsa que se repete como História. Às vezes a História se repete como farsa. Exemplo: o dossiê Lorenzetti. O que Lula disse desse atentado é, sem tirar nem pôr, o que dizia em 1981 o coronel Job Sant’Anna, tentando enterrar numa simulação de inquérito militar o caso do Riocentro. Na época, uma bomba estourara no colo de um capitão e um sargento do DOI-Codi. Logo, segundo o coronel, aquilo só podia ser obra dos adversários, pois o Exército não sairia por aí explodindo seus próprios arapongas.

Lula diz que, se o dossiê arrebentou nas mãos de seus cupinchas, ele deve ser um artefato armado pela oposição, porque ela está perdendo a corrida eleitoral nos institutos de pesquisa, logo, o escândalo lhe interessa. No momento em que o coronel Job falava essas bobagens, a ditadura militar tinha pouco mais de 16 anos, mas caía aos pedaços. Acabaria em quatro anos, por falência múltipla dos órgãos de repressão. A diferença, como lembrou a jornalista Miriam Leitão, fica por conta das idiossincrasias de estilo pessoal. Figueiredo usou o coronel. Lula deu o recado de viva voz.

Aos 21 anos, o regime civil parece tão envelhecido quanto a ditadura no tempo de Figueiredo. Tem um serviço de inteligência atacado de burrice, fazendo despacho em encruzilhada escura, com dinheiro que ninguém sabe de onde vem. E um presidente da República que, de mentira em mentira, virou o grande refém da maracutaia nacional. Lula e Figueiredo se parecem. Seus regimes também. Mas o brasileiro anda muito mudado.

Em 1981, em vez de ir às urnas para reeleger um presidente, ele foi às ruas fazer sua própria campanha. A das eleições diretas, diga-se de passagem. Produto de um movimento que, anos antes de escolher o primeiro presidente – Fernando Collor, por sinal, impichado – escolheu o regime em que as coisas teriam que acontecer. Duas décadas depois, o voto é direto e o regime, civil. Mas a campanha lhe foi surrupiada pelos políticos. O que não teria maior importância se estivesse em jogo só uma escolha de presidente.

Escolher presidente não é assunto que valha tirar de casa, num domingo de primavera, 126 milhões de brasileiros. Presidente de quem? Para fazer o que com ele? O país está, no fundo, sem presidente de verdade há vários mandatos. A esta altura, o eleitorado deve ter aprendido a se virar sem isso. Talvez qualquer pessoa sirva para o cargo, quando o cargo não serve mesmo para muita coisa. Presidente é importante em país que tem projeto para o futuro. O Brasil ultimamente só tem projeto para o passado.

No domingo que vem, a aposta é muito mais séria que a da presidência. Os eleitores terão que escolher uma saída para a crise em que os governos civis os enfiaram. Em outras palavras, escolherão um regime outra vez. E disso até agora eles nem foram avisados.

É uma escolha difícil. O regime que está aí, pelo visto, deu errado. Às vezes parece não ter conserto. Mas deixará saudades se em seu lugar vier coisa pior. E isso só um segundo turno daria a Lula a chance de discutir com a oposição, pondo em cima da mesa a proposta que cada um tem para sair do buraco que juntos cavaram. Não dá para fazer uma escolha dessas, com Lula escondido da campanha nos palanques de Newton Cardoso, Orestes Quercia ou Jader Barbalho, o trio que encarna sua única proposta visível para acabar com a corrupção que lhe comeu o governo no primeiro mandato. Segundo turno nele.
Marcos Sá Correia

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