sábado, setembro 30, 2006

A imprensa na berlinda


A mesma imprensa que ajudou a aprofundar as investigações dos escândalos do mensalão e dos sanguessugas se vê, agora, acusada de ter perdido o equilíbrio na cobertura das eleições. Para entidades que fazem o acompanhamento diário da cobertura do processo eleitoral, a mídia exerce sobre o presidente Lula e seus aliados uma vigilância que não se repete em relação aos seus adversários políticos.

Essa diferença, na avaliação desses observadores, se acentuou ainda mais com a descoberta da negociação do dossiê que apontaria o envolvimento de tucanos com a máfia das ambulâncias.
A principal crítica é que os veículos de comunicação se dedicaram a tratar quase exclusivamente da participação de petistas na compra do dossiê, deixando de lado a apuração de uma denúncia que, a se confirmar, poderia até ser mais grave: a participação de ex-ministros da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso (José Serra e Barjas Negri, ambos do PSDB) no esquema de superfaturamento de ambulâncias.

Lula no vermelho
Seja por acumular o cargo de presidente com a condição de candidato, seja por causa das lambanças dos "aloprados" do PT, como ele mesmo disse, ou, ainda, pela má vontade da imprensa, o certo é que Lula ostenta hoje, de longe, o maior número de reportagens negativas na mídia nacional, segundo o Observatório Brasileiro de Mídia - entidade que tem feito, desde julho, um acompanhamento sistemático da cobertura eleitoral dos quatro primeiros colocados na corrida ao Palácio do Planalto em cinco jornais e quatro revistas (leia mais).

De acordo com o último boletim semanal divulgado pelo Observatório, o presidente-candidato ocupou 61,3% do espaço dedicado pelos jornais O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense à cobertura das eleições presidenciais, entre 16 e 22 de setembro. Do total de inserções que diziam respeito ao candidato petista, segundo o levantamento, 62,5% eram reportagens negativas. O mesmo ocorreu em 57,5% das matérias em que Lula apareceu na condição de presidente.

O seu adversário direto, Geraldo Alckmin (PSDB), não teve a mesma visibilidade. Respondeu por apenas 10,2% do total ocupado pelos quatro principais presidenciáveis. Em compensação, ficou com o maior percentual de reportagens positivas (39,7%). Em apenas 20,6% das matérias em que aparecia, o tucano tinha sua imagem questionada.

"Há uma cobertura tendenciosa desde o início. Lula, enquanto candidato, e presidente tem exposição maior e essa exposição é negativa em sua maioria. É um duplo prejuízo", afirma Kjeld Jakobsen, diretor do Observatório da Mídia, ex-secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da prefeitura de São Paulo, na gestão petista de Marta Suplicy (o que publicamos antes sobre o estudo).

Jakobsen rechaça o argumento de que a predominância de aspectos negativos seria em decorrência dos próprios atos do presidente ou de pessoas ligadas a ele. Segundo o ex-dirigente da CUT, independentemente disso, há indícios de que a cobertura eleitoral está sendo tendenciosa.

"Identificamos casos em que o título era negativo mesmo quando a notícia era neutra. Outra maneira era apresentar um título neutro, uma matéria neutra, mas colocar uma foto que esculhambava. Outra coisa que observamos era o posicionamento das matérias. As poucas que mostravam aspectos positivos eram menores ou estavam em um canto escondido da página", exemplifica. De acordo com o estudo, esse desequilíbrio na abordagem dos candidatos é mais explícito no jornal O Estado de S. Paulo e na revista Veja.
O que dizem a Veja e o Estadão

A crítica é de pronto rebatida pelo diretor de redação do Estadão, Sandro Vaia, que diz não reconhecer a legitimidade da metodologia usada pelo Observatório de Mídia nem partilhar da visão de que o mais tradicional jornal paulista tem sido severo demais com o presidente. "O jornal não é pró nem anti-Lula. Como ele é presidente da República, é normal que seja mais citado e que seja alvo de mais críticas", diz o jornalista. "Quem parece ser anti-Lula, no caso, são os companheiros de partido, a quem ele chamou de burros, bandidos e aloprados", acrescenta.

Segundo Vaia, não há nenhuma orientação dentro do jornal para que haja uma cobertura diferenciada entre os candidatos. O diretor de redação do Estadão diz que os critérios para a publicação de notícias relacionadas aos presidenciáveis são os mesmos usados para a publicação de qualquer notícia, ou seja, a sua importância jornalística. "Sou jornalista, não sou presidente de partido político. Por que a minha preocupação com a cobertura eleitoral teria que ser diferente de minha preocupação com qualquer cobertura jornalística na qual o jornal esteja empenhado?" (leia a íntegra da entrevista de Vaia).

O diretor de redação de Veja, Eurípedes Alcântara, ao responder por que as páginas da revista estampam tantas matérias negativas relacionadas com o presidente, afirmou: "O candidato-presidente e seu partido, o PT, produziram mais fatos negativos do que positivos". Segundo Alcântara, o jornalismo tem de buscar a verdade, não a imparcialidade. Na avaliação dele, "felizmente", os veículos de comunicação não estão sendo neutros na cobertura destas eleições.
"Com as notórias exceções de sempre, os melhores órgãos de imprensa estão conseguindo produzir reportagens sem subserviência ao poder e sem se refugiar no comodismo da neutralidade", afirmou o jornalista, sem especificar quais seriam as "exceções de sempre" (leia a íntegra).

Jornalismo declaratório

Responsável pela seleção e análise de matérias sobre corrupção publicadas em 63 jornais e revistas de todo o país, o jornalista Marcelo Soares, responsável pelo projeto Deu no jornal, da Transparência Brasil, considera saudável que Lula, na condição de presidente e candidato, seja mais "vigiado" do que seus adversários.

Mas também identifica certo desequilíbrio na cobertura do noticiário político. E aponta três fatores para essa desigualdade: a "hiperdependência" do jornalismo declaratório, a dificuldade dos veículos em ir além da "notícia do dia" e a falta de um acompanhamento mais assíduo de outras esferas de governo, como as estaduais e as municipais. "Quando se abrem os cadernos de política, quase tudo se faz na base do 'diz', 'afirma', 'nega', 'acusa'. É mais fácil fazer jornalismo assim, e garante o papel pintado nosso de cada dia numa situação em que não pára de surgir assunto e as equipes continuam enxutas", observa. A superação desse modelo passa necessariamente, segundo ele, por quatro palavras: "menos declaratório, mais reportagem".

"O principal problema da hiperdependência do declaratório é que ele trata questões de fato como questões de opinião. Isso é politicamente muito confortável para todos os lados envolvidos. O leitor acredita no que quiser, dependendo apenas de uma escolha que já foi feita", afirmou ele ao Congresso em Foco (leia a íntegra).

Efeito dossiê

Estudioso das relações entre mídia e política, o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Venício de Lima considera que a cobertura dos escândalos políticos tem se pautado basicamente pela "presunção da culpa", em vez de partir da clássica presunção jurídica da inocência. "Não tem tipificação de crime, mas tem julgamento das pessoas suspeitas do eventual crime. A acusação está na construção da narrativa e em ressaltar certos aspectos", afirma.

Mesmo ressalvando que ainda não fez uma análise mais aprofundada sobre a crise do dossiê, Venício garante que o tratamento dado hoje pela imprensa ao caso não difere muito do dispensado ao escândalo do mensalão. "O que está acontecendo agora não é novidade. A grande mídia optou por se afastar do julgamento jurídico, no qual a pessoa é inocente até que se prove o contrário. A mídia resolveu punir os acusados como se fossem culpados", diz Venício.

Para o pesquisador, há dois problemas evidentes na cobertura do escândalo do dossiê: a credibilidade do autor das denúncias, o empresário Luiz Antonio Vedoin, coordenador da quadrilha, e o conteúdo do material. "A única pessoa que disse que o dossiê valeria a pena foi o delegado da Polícia Federal, que já saiu do caso. A menos que tenha sido uma grande armação. Mas se fosse esse o caso, caberia à imprensa saber se realmente não valia nada e quais são as coisas por trás disso tudo", avalia (leia mais).

Desde a descoberta da negociação do dossiê, o número de matérias negativas para Lula aumentou, conforme a análise do Observatório Brasileiro de Mídia. No último dia 20, a disparidade entre a presença de Lula e a dos outros candidatos à Presidência da República na imprensa mereceu até um relatório exclusivo. Naquele dia, o estudo levou em conta três jornais: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo.

No total, 97 reportagens foram dedicadas à cobertura dos quatro principais candidatos. Lula apareceu em 70, Alckmin em seis e Heloísa Helena e Cristovam Buarque foram citados em três, cada um. Sobre a totalidade de reportagens de cada candidato, Geraldo Alckmin teve o maior percentual de reportagens positivas, 50%, e a menor de negativas, 16,7%. Lula teve a menor porcentagem de positivas, 21,4%, e a maior de negativas, 65,7%.
Fenaj defende regulamentação

A redução do número de repórteres e a falta de reportagens mais analíticas também são apontadas como fatores de empobrecimento do jornalismo brasileiro pelo presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sérgio Murillo de Andrade, professor de Ética e Legislação no Instituto Luterano de Santa Catarina. Na avaliação dele, mesmo com essas limitações, percebe-se uma tentativa de isenção na cobertura eleitoral deste ano. "Não vejo uma tendência definida dos veículos de comunicação nesse período eleitoral. Na média, está havendo uma tentativa de isenção", considera.

Sérgio foi um dos principais defensores do projeto de lei, arquivado em 2004 pela Câmara, que previa a criação do Conselho Federal de Jornalismo. A proposta naufragou sobre fortes acusações de que não passaria de uma tentativa do governo Lula e do PT de manter a imprensa sob sua tutela.

Contestando essa versão, o presidente da Fenaj classifica a mídia como "o poder menos transparente que existe" e aponta a criação de mecanismos que permitam o seu monitoramento pela sociedade como medida fundamental para a melhoria da qualidade da comunicação no país. "A sociedade precisa desenvolver meios para controlar a mídia. É importante não cercear a liberdade de imprensa, mas tem que ter um tipo de regulação para evitar abusos", argumenta.

Essa opinião é compartilhada pelo diretor do Observatório Brasileiro de Mídia, Kjeld Jakobsen, que acredita que o debate sobre o Conselho Federal de Jornalismo é essencial para haver mais responsabilidade na divulgação das notícias. Para ele, no entanto, "há uma reserva contra tudo que possa regulamentar a imprensa", posição que ele atribui mais aos donos dos meios de comunicação que aos profissionais de imprensa.

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