quarta-feira, janeiro 17, 2007

O precedente Severino

José Nêumanne Pinto

Mesmo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva gozando férias numa base militar no Guarujá, no litoral paulista, convencionou-se que o que tem paralisado o governo é a guerra travada pela presidência da Câmara dos Deputados. Na verdade, o cargo é importante, pois imenso é o poder das Mesas das duas Casas do Congresso. Sem falar no fato de ser o presidente da Câmara o segundo sucessor eventual do presidente da República. Há o precedente Severino Cavalcanti, mas parece que os dois lados responsáveis por aquela lambança, ainda que recente, não parecem ter aprendido bem a lição. O governo enxerga a disputa entre Aldo Rebelo (PCdoB-SP) e Arlindo Chinaglia (PT-SP) como uma vitória assegurada, pois, se o primeiro ganhá-la, já deu provas de sua fidelidade canina ao chefe, seja como ministro de Coordenação Política, seja no cargo que atualmente ocupa e no qual pretende ficar. E ninguém põe em dúvida, da mesma forma, a sabujice de Chinaglia, sempre disposto a fazer o jogo que o patrão mandou, seja como deputado raso, seja como líder do governo na Câmara. A questão não é esta, mas fundamentalmente o fato de que esse gênero de divisão interna já ocorreu quando o Planalto insistiu na candidatura oficial de Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), para lhe pagar alguns favores (e nisso os dois disputantes atuais empatam), sem prestar atenção na evidência de que a dissidência de Virgílio Guimarães (PT-MG) poderia levar ao paroxismo da sagração do baixo clero na figura singular de Severino Cavalcanti. Enquanto o governo (à época pela voz do atual protagonista Aldo Rebelo) arrotava prepotência dizendo que ganharia com qualquer um deles, ambos foram derrotados. E, embora nunca tivesse sido posta em dúvida a capacidade de o vencedor fazer o mesmo jogo, ele terminou sendo um “atrapalho no trabalho”.

Espumas flutuantes

De qualquer maneira, embora seus porta-vozes vivam a repetir que a luta pela presidência da Câmara não lhe diz respeito, Lula já se aproveitou para empurrar para as calendas o tal programa de retomada do crescimento (agora com a idéia da “aceleração”) e até a composição do ministério para o segundo governo. Quem conhece bem o presidente da República sabe que tudo de que ele mais gosta é postergar decisões. Sem saber direito como fazer, ele é o mais fiel seguidor daquela tática do PSD de Tancredo Neves que gostava de atirar a água contra as pedras para depois analisar a natureza da espuma. O problema é que, enquanto isso, o Brasil precisa de várias providências e não há governo para tomá-las.

“Deixem o homem vadiar!”

O único avião que tem tido o privilégio de decolar e pousar na hora certa desde que eclodiu a crise dos controladores de vôo no Brasil é o Aerolula. Enquanto os passageiros sem Bolsa-Família dormem no chão das estações em obras permanentes, o presidente da República, em seu brinquedo favorito, diverte-se fazendo e desfazendo sonhos ministeriais. Mas até essa azáfama o cansou e ele tirou férias. Primo fare niente, doppo riposare, reza o dito popular italiano que o pernambucano (portanto, conterrâneo de Lula) Ascenso Ferreira glosou no poema Filosofia: “Hora de comer – comer! / Hora de dormir – dormir! / Hora de vadiar – vadiar! / Hora de trabalhar? / Pernas pro ar, que ninguém / é de ferro!”.

“Silêncio, ele está na praia!”

Esta temporada de Lula na base do Guarujá lembra o filme cômico As férias de Monsieur Hulot, no qual Jacques Tati critica a automação e insensibilidade de nossos tempos. Mas a lembrança do cômico francês ocorre por oposição: algum gaiato poderá lembrar que o presidente não goza férias, mas teve a bondade de dar uma folga a nossos ouvidos. Na praia, ele fica longe do gabinete, do Aerolula e dos microfones e das câmeras, diante dos quais distorce a geografia, a história, a lógica e a gramática. Mas isso não muda o fato de que, com estradas esburacadas, assaltos na Linha Vermelha e a operação tartaruga dos controladores de vôo, ele se tornou o único brasileiro a gozar férias em paz e segurança.

Pontapé no traseiro

Não se deve perder de vista o fato de que a oposição teve uma participação relevante no grotesco episódio da eleição de Severino Cavalcanti. Em primeiro lugar, por não ter aparecido um único líder tucano ou pefelista capaz de entender que a situação era propícia para que ou o PSDB ou o PFL lançasse um candidato próprio para enfrentar os dois litigantes petistas. Os tucanos não deram a mínima força para José Carlos Aleluia (PFL-BA) e terminaram sendo levados na onda da articulação em torno do candidato do baixo clero. A solução não poderia ser pior: Severino Cavalcanti (então no PPS-PE) sempre foi servil aos interesses governistas e ainda desmoralizou o parlamento dando o pontapé inicial para a que se tornaria a pior legislatura da história.

Bis para a farsa

Agora a história ameaça repetir-se. E pode piorar a versão que Karl Marx deu a esse tipo de bis na célebre abertura do ótimo texto sobre O 18 brumário de Luís Bonaparte, quando parodiou seu mestre Hegel afirmando que a história ocorre como tragédia e se repete como farsa. Desta vez, a piada chamada Severino ameaça ser contada de novo em termos bem similares. Enquanto o governo navega na ilusão da vitória com qualquer um dos dois, a oposição mais uma vez mostra-se completamente inerte, sem saber o que fazer da situação, despreparada para enfrentar os fatos que lhe são apresentadas e falando numa terceira via, que não passa de retórica vazia. Pode até ser que não apareça um novo Severino, e ainda piorado, mas as circunstâncias favorecem isso.

Dividir para decidir

Os jornais noticiam as idas e vindas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva entre os amigos e companheiros Aldo Rebelo e Arlindo Chinaglia como se isso representasse uma novidade. Não é: no tempo em que era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, ele já punha Alemão e Osmarzinho para lutarem entre si e depois se decidia por quem ganhasse o apoio da massa. Disposição similar de dividir para decidir ele mostrou no governo quando apostou no confronto entre José Dirceu e Palocci. É exatamente o que faz agora com Aldo e Arlindo. E ele vai ficar com quem tiver mais vasilhames para trocar, como se costuma dizer na gíria futebolística, à qual Sua Excelência gosta de recorrer nas parábolas com que se comunica com o povo.
HEROIS BRASILEIROS
O BRASILEIRO FERNANDO GABEIRA

O seqüestrador do embaixador americano Charles Elbrick e autor do best-seller que virou filme O que é isso, companheiro? é o melhor nome da oposição para enfrentar o governo na guerra pela presidência da Câmara. O simples fato de pertencer a uma elite de deputados honestos, entre os quais também figuram Raul Jungman (PPS-PE) e Luíza Erundina (PSB-SP), já lhe garantiria esta menção, mesmo que essa tentativa de escolher um presidente da Câmara pelas virtudes, e não pelos defeitos, em nada resulte.
* Coluna publicada semanalmente no Jornal da Paraíba e postada por Rainério

0 comentários: