segunda-feira, dezembro 04, 2006

Ariano Suassuna - Escritor

Jornal da Câmara - DF27/11/2006, 08:34
Ariano Suassuna - O encantador de históriasNa política, o autor de “A Pedra do Reino” faz uma leitura positiva do governo atual, especialmente no que se refere à integração da América Latina e ao projeto de revitalização do Rio São Francisco
Da Redação
Do alto de seus 79 anos, em uma sala repleta de livros, quadros e objetos de arte, em Recife, Ariano Suassuna concedeu entrevista ao Personalidade, novo programa da TV Câmara. O escritor paraibano disse não fazer distinção de valor entre a arte popular e a erudita e condenou o que chama de “lixo cultural”, transmitido pela televisão brasileira, veículo em que reconhece um poder inigualável no que se refere à difusão da cultura nacional.Na política, o autor de “A Pedra do Reino” faz uma leitura positiva do governo atual, especialmente no que se refere à integração da América Latina e ao projeto de revitalização do Rio São Francisco, “o rio da integração nacional”. Também autor de “O auto da compadecida”, Suassuna compara o povo brasileiro ao personagem principal da peça, João Grilo, herói na arte da sobrevivência e da resistência. Nossa equipe entrevistou o escritor em sua casa, no tradicional bairro de Casa Forte. Participaram da entrevista que a antropóloga da Universidade Federal de Pernambuco Aparecida Nogueira, autora de vários textos sobre a obra de Ariano Suassuna, e os jornalistas Cláudio Ferreira, da TV Câmara, e Amneres Pereira, diretora do Jornal da Câmara.
Cláudio Ferreira - O senhor recorre a um artigo escrito por Machado de Assis em 1870 para falar de um Brasil real e de um Brasil oficial. Essas definições ainda valem hoje em dia?
Ariano Suassuna – Machado de Assis diz que o país real é bom, revela os melhores instintos, mas o oficial é caricato e burlesco. Não sei se fazendo violência ao pensamento de Machado de Assis, identifico o Brasil oficial com as classes privilegiadas e o Brasil real com o Brasil do povo, dessa imensa maioria de despossuídos que, a meu ver, são a fonte da grande esperança que eu tenho no meu povo. Se Machado de Assis fosse vivo, constataria que o país real continua bom, revelando os melhores instintos, e o país oficial ficou ainda mais caricato e burlesco.
Amneres Pereira - Há alguns meses, houve o episódio em que o Exército cercou as favelas do Rio de Janeiro para recuperar armas que estariam na mão dos traficantes, e o senhor diz que quando a polícia cerca uma favela é o povo do Brasil oficial cercando o Brasil real. De que forma o Estado poderia enfrentar o tráfico sem desrespeitar o povo, os direitos humanos, o direito de ir e vir, a liberdade da população?
Ariano Suassuna - Olhe, eu não idealizo romanticamente o povo do Brasil real, não. Eu comparo episódios como esse à guerra de Canudos. Eu lembro sempre que, quando o Brasil real levanta a cabeça, o Brasil oficial vai lá e corta essa cabeça. No arraial de Canudos estava o povo do Brasil real, com suas qualidades e defeitos, e nos grupos sociais que estavam cercando Canudos se encontravam inclusive pessoas do Brasil real que foram recrutadas pelo Brasil oficial para atirar em seus irmãos. No geral, estou do lado do povo do Brasil real, apesar de formado e deformado pelo Brasil oficial desde que nasci, porque nasci na classe privilegiada. Estou à vontade para falar nesse assunto porque sou um intelectual que, diferentemente da maioria, nunca falei mal das Forças Armadas. Apoiei, durante um tempo muito difícil, generais patriotas como Euler Bentes Monteiro e Antônio Carlos de Andrada Serpa, porque via neles uma preocupação de defender o País. Acho que nós, intelectuais, temos o dever de começar a relembrar que o Brasil precisa muito de uma aproximação nossa com as Forças Armadas e com o clero neste momento em que vivemos.
Aparecida Nogueira - Você, já na década de 70, com A Pedra do Reino, falava de uma bela utopia, que é juntar todo o povo latino-americano em um só povo. Você vê um esboço desse sonho no governo Lula?Ariano Suassuna - Recentemente eu li um artigo de um jornalista do qual discordei, acho que quase inteiramente. Ele usou a palavra excremento, por ela mesma e por sinônimos, para definir o Brasil e o povo brasileiro. Acho que no meio tinham umas 10 ou 12 referências ao Brasil e ao povo brasileiro como excremento, como povo vicioso. E no meio havia uma frase em que ele dizia que “utopia” é uma palavra ridícula. Eu vou dizer uma coisa: eu acho que não é, não; a razão manda que a gente se acomode em casa, e o sonho é que leva a gente para a frente. Existe um poema de Fernando Pessoa que eu não sei se vou citar exatamente, mas, falando sobre D. Sebastião, que era acusado de louco, ele dizia: “Louco, louco, sim, porque quis grandeza como a sorte a não dá. Sem a loucura, o que é o homem? Uma besta sadia, cadáver adiado que procria.” Eu achei isso uma beleza. Então, você veja, em 1970 eu tinha já esse sonho da união da América Latina, que agora estou vendo se esboçar. Estou vendo o Brasil se unir à Venezuela, à Argentina, ao Paraguai, à Bolívia — nunca pensei que em vida ainda eu assistisse a isso.
Cláudio Ferreira - Estamos vivendo um governo de esquerda, que se elegeu prometendo fazer várias revoluções, e nem todas elas foram feitas. Como o senhor analisa a trajetória desse governo?
Ariano Suassuna - Eu estou vendo certos acontecimentos amargurado e triste, mas, talvez por ser velho, eu estou menos perplexo do que vocês todos, porque não é a primeira que eu assisto a isso, não. Eu já vi Getúlio Vargas, que era um homem honrado pessoalmente, cercado de problemas desse mesmo tipo que estão cercando Lula. Ele foi um dos poucos governantes que tinha um projeto para o Brasil e foi expulso do poder não pelos erros do governo dele, mas sim pelo que ele tinha de bom e de certo.A injustiça social brasileira é multissecular. Começou no momento em que nós, portugueses, chegamos aqui e dominamos índios e negros, que ainda hoje são o grosso da população do Brasil real. Eu sabia que um governo de quatro ou de oito anos não iria corrigir isso. Acho que, para o que é possível fazer, Lula já fez muita coisa. Lembro que a Base Militar de Alcântara estava para ser entregue e Lula evitou. Lembro também que se estava armando um golpe contra Hugo Chávez, semelhante, aliás, ao de 1964 aqui, e foi o apoio de Lula que evitou sua queda. Foi a presença de Lula que evitou a entrega da Petrobras e da Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco). O Rio São Francisco é para mim um rio sagrado, como o Ganges é para os indianos. Não foi à toa que Alceu Amoroso Lima, que não era mineiro nem nordestino, escreveu a seguinte frase: “Do Nordeste para Minas corre um eixo que, não por acaso, segue o curso do Rio São Francisco, o rio da unidade nacional. A esse eixo o Brasil tem de voltar de vez em quando se não quiser se esquecer de que é Brasil”. Lula não me decepcionou, não, porque ele revela uma prudência e uma habilidade muito grandes. Ele está conseguindo levar adiante o sonho dele, apesar de todos os tropeços que ele é forçado a admitir. Para mim, como o meu personagem João Grilo, ele é um misto de Dom Quixote e Sancho Pança, porque teve o sonho dele, de um homem saído do Brasil real.
Amneres Pereira - Mas Lula também, de uma certa forma, decepcionou muito o povo sofrido desse Brasil real na medida que houve várias mentiras em torno desse governo, que veio para fazer reformas tão esperadas. Como a gente consegue reformar essa representação política para ela atender às expectativas da sociedade?Ariano Suassuna - Não sei, não sou um político. Mas discordo do fato de que Lula tenha decepcionado o povo do Brasil real. Decepcionou mais a classe média. O povo do Brasil real separa muito, e faz muito bem, a figura de Lula da figura desses corruptos que o traíram e estão desmoralizando o governo dele. Apesar de tudo que está acontecendo em torno, e que não é digno de Lula, o povo do Brasil real continua a apoiá-lo.
O Sertanejo Claudio Ferreira - O senhor foi criado no sertão, e isso influenciou muito a sua literatura. Que peculiaridades do universo sertanejo a gente que mora nas grandes cidades não conhece ou às vezes até despreza?
Ariano Suassuna – Esse preconceito começou a ser desfeito no Brasil pelo meu mestre e patrono Euclides da Cunha. Criado e formado pelo Brasil oficial, saiu de lá para escrever matérias para o jornal O Estado de S.Paulo. E saiu como um cruzado da República, certo de que ia encontrar um núcleo de fanáticos, um povo bárbaro, que constituía um perigo para a República. Mas, ao se ver diante do povo do Brasil real que estava lá em Canudos, começou a desfazer esse engano. Foi ele quem começou a mostrar ao Brasil urbano que o povo do sertão tinha qualidades extraordinárias, qualidades de resistência, de coragem. Ele chegou a escrever depois uma frase, que não sei se vou repetir exatamente, mas foi mais ou menos a seguinte. Ele dizia: “Deslumbrados pelas miragens de uma civilização que recebemos de empréstimo e que nos chega embalada pelos transatlânticos, nós ficamos nos acotovelando na Rua do Ouvidor e deixamos de ver o sertão amplíssimo, onde se desata a base real da nossa nacionalidade”.
Amneres Pereira - O senhor tem-se referido à globalização como danosa para a cultura regional, das nossas raízes. O fato de a população brasileira não ter acesso a teatros, cinemas, exposições, livros, ajuda a cultura estrangeira a se sobrepor à nossa cultura?
Ariano Suassuna - É uma faca de dois gumes. Se por um lado o povo do Brasil real fica sem acesso a essas coisas, por outro fica também fazendo uma arte que não é uma contaminação da má arte estrangeira, porque, por favor, me façam a justiça de dizer que eu não tenho nada contra a arte estrangeira. Eu fui participar de um almoço num jornal em São Paulo, e um jornalista disse para mim: “O senhor é uma pessoa contraditória porque vive falando mal da influência da cultura estrangeira na brasileira e, no entanto, elogia Villa-Lobos, que recebeu influência de Debussy”. Disse para ele: mas é possível que eu, depois dos 70 anos, ainda tenha que esclarecer que eu não tenho nada contra Debussy? Eu falo mal é do lixo cultural que querem nos apresentar como modelo, como parâmetro. Querem a uniformização da cultura e querem que eu ache que uniformização da cultura é universalização da cultura. Não é.
Cláudio Ferreira - O senhor também bate no excesso de influência da língua estrangeira na língua portuguesa. Em um mundo globalizado, como se pode barrar essa contaminação da língua?
Ariano Suassuna - Quando eu era menino, os nomes ligados ao futebol, por exemplo, eram todos escritos em inglês. Futebol se escrevia football, goleiro se chamava goalkeeper; escanteio era corner. Os jogadores que atuavam no meio de campo eram chamados de halfs. O centro-avante era center forward. No entanto, a imprensa brasileira, com um bom senso enorme, traduziu esses nomes. A língua inglesa tem outro espírito, um espírito diferente da língua portuguesa. Já os portugueses são muito preocupados com o francês. Eu não tenho preocupação nenhuma com o francês, porque é uma língua do mesmo tronco nosso, neolatina como português. Os portugueses, em vez de usar a palavra equipe, usam equipa. Não vejo necessidade disso, porque há muita palavra feminina em português terminada em e. Bondade, por exemplo.Acho que, se as pessoas ligadas aos meios de comunicação de massa fizerem um esforço de bom gosto, como foi feito pela imprensa e pelo povo brasileiro em relação ao futebol, a língua será enriquecida e não deturpada por tais meios.
Amneres Pereira - Fala-se muito que o senhor faz críticas à televisão. O senhor já cansou até de explicar que sua crítica não é ao veículo, é ao que se faz com a televisão, no sentido de ela não levar arte à população.
Ariano Suassuna - Até faço justiça à televisão. Ela tem uma parte de comunicação e outra de entretenimento. O que reclamo é que, às vezes, no momento da arte, coloca-se uma coisa ruim. Mas devo coisas à televisão, sempre digo isso. Como não gosto de viajar, nunca viajei, um dia liguei a televisão às onze e meia da noite e vi um espetáculo belíssimo. Vi o Balé Petruska na televisão, dançado por Rudolf Nureyev, um dos maiores bailarinos do século XX. Jamais teria acesso a esse espetáculo se não fosse a televisão. Eu seria até um ingrato se eu esquecesse o papel importantíssimo que a televisão pode ter, inclusive na divulgação da literatura brasileira. Guel Arraes, por exemplo, fez um seriado belíssimo sobre um grande romance brasileiro, O Coronel e o Lobisomem, de José Cândido de Carvalho. Mas só posso ficar triste vendo Robocop.
Aparecida Nogueira – O senhor também promove um diálogo entre a cultura erudita e a cultura popular, sem hierarquizar. Normalmente, quando se dialoga com a cultura popular é sempre fazendo concessões ou olhando de cima para baixo, como se ali não tivesse uma sabedoria. E o senhor caminha em sentido contrário a isso.
Ariano Suassuna - Outro dia, um jornalista me perguntou a quê eu atribuía o poder de comunicação do Auto da Compadecida. Aí, disse a ele que podia responder sem nenhum cabotinismo que atribuo esse poder à força das histórias populares nas quais me baseei para escrever o livro. Eu me baseei em três folhetos da literatura da cordel. O primeiro ato é baseado em O Enterro do Cachorro, parte de um folheto maior chamado O Dinheiro, do meu conterrâneo Leandro Gomes de Barros, paraibano como eu e que como eu morava em Pernambuco. O segundo ato é baseado em O Cavalo que Defecava Dinheiro. Na peça, eu transformei em um gato por motivos óbvios; era muito difícil botar um cavalo no palco. E o terceiro ato é baseado em um terceiro folheto, O Castigo da Soberba.Eu considerava aquelas histórias puramente locais, porque foi no sertão da Paraíba que tomei conhecimento delas. Tive a grata surpresa de descobrir depois que O Enterro do Cachorro era uma história do século V do norte da África e tinha sido aproveitada por um grande escritor francês do século XVIII, Lesage, numa novela picaresca que ele escreveu chamada Gil Blas de Santillana. E a história do O Cavalo que Defecava Dinheiro, com a bexiga do cachorro que João Grilo usa para matar o cangaceiro, também era do norte da África e tinha sido usada por ninguém mais, ninguém menos que Cervantes no Dom Quixote. Eu tive essa alegria de reencontrar esses grandes autores através daquelas histórias populares para as quais os outros intelectuais torciam o nariz.
Cláudio Ferreira - O senhor nasceu e mora numa região que por muitos é tida como o Brasil que não dá certo. Eu gostaria de saber se o senhor concorda com essa análise e o que se pode fazer para minimizar as diferenças regionais.
Ariano Suassuna - Eu não concordo que o Nordeste seja o Brasil que não dá certo, não. Para mim, o Nordeste dá certo desde muito tempo. Precisamos fazer uma distinção muito grande entre o progresso tecnológico, econômico, militar e político e o processo cultural. Do ponto de vista econômico, militar e político, os Estados Unidos estão muito acima da Índia, mas do ponto de vista cultural, eu, pessoalmente, acho a cultura indiana muito mais importante que a cultura americana.Uma vez, vieram me perguntar se era verdade que eu era contra o desenvolvimento do Brasil, porque com o desenvolvimento acabava a arte popular da qual eu gosto tanto. É claro que não sou. Se o desenvolvimento econômico acabar com a arte popular, se for fundamental para isso, que acabe, prefiro que acabe a injustiça, mesmo que acabe a arte popular. Mas isso não é verdade, isso é um sofisma das pessoas que não gostam nem respeitam a arte popular, porque na China houve uma diminuição bem grande da injustiça e a ópera de Pequim continua tão boa ou melhor do que era antes.

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