quarta-feira, maio 16, 2007

PROJETO GENOMA

Células-Tronco

Células-tronco são células capazes de multiplicar-se e diferenciar-se nos mais variados tecidos do corpo humano (sangue, ossos, nervos, músculos, etc.). Sua utilização para fins terapêuticos pode representar talvez a única esperança para o tratamento de inúmeras doenças ou para pacientes que sofreram lesões incapacitantes da medula espinhal que impedem seus movimentos.As células-tronco existem em vários tecidos humanos, no cordão umbilical e em células embrionárias na fase de blastócito. Pesquisas com células-tronco, porém, estão cerceadas pela desinformação ou por certas posições religiosas que vêem nelas um atentado contra a vida em vez de um recurso terapêutico que possibilitará salvar muitas vidas.

Caracterização das células-tronco

Drauzio – O que são células-tronco?
Mayana Zatz – São células que têm a capacidade de diferenciar-se em diferentes tecidos humanos. Existem as células-tronco totipotentes ou embrionárias, que conseguem dar origem a qualquer um dos 216 tecidos que formam o corpo humano; as pluripotentes, que conseguem diferenciar-se na maioria dos tecidos humanos, e as células-tronco multipotentes que conseguem diferenciar-se em alguns tecidos apenas.

Drauzio – No momento da fecundação, quando o espermatozóide fecunda o óvulo, começam as primeiras divisões celulares e surgem as células totipotentes que vão obrigatoriamente dar origem a todos os tecidos do corpo. Essas células permanecem no indivíduo pelo resto da vida?
Mayana Zatz – As totipotentes não. Elas existem até quando o embrião atinge 32 a 64 células. A partir daí, forma-se o blastocisto cuja capa externa vai formar as membranas embrionárias, a placenta. Já as células internas do blastocisto, que são chamadas de totipotentes, vão diferenciar-se em todos os tecidos humanos.

Drauzio – Quer dizer que para obter uma célula totipotente é preciso pegar um óvulo fecundado e colhê-la nas primeiras divisões?
Mayana Zatz – Precisam colhê-la até a divisão em 64 células. Indicam as pesquisas ainda em andamento que até 14 dias depois da fecundação, as células embrionárias seriam capazes de diferenciar-se em quase todos os tecidos humanos. Depois disso, começam a dar origem a determinados tecidos.
Os adultos conservam células - por exemplo, na medula óssea - que têm a capacidade de diferenciar-se em vários tecidos, mas não em todos. Elas também existem no cordão umbilical, mas já são células-tronco adultas que não conservam a capacidade das células embrionárias.

Drauzio – Quando se trabalha com reposição de tecidos, é possível pegar células pluripotentes da medula óssea, ou seja, do tutano do osso, aquele tecido gorduroso que vai dar origem aos elementos do sangue, e obrigá-las a transformar-se, por exemplo, em neurônios no cérebro?
Mayana Zatz – Essa é a grande questão. Alguns anos atrás, quando se começou a trabalhar com células-tronco, os estudos diziam que sim, mas agora isso está sendo questionado. Um exemplo é o grupo de pesquisadores do Rio de Janeiro que fez um trabalho com células-tronco em pessoas cardíacas. Hoje se discute se realmente essas células se diferenciaram em células cardíacas ou se simplesmente melhoraram a irrigação do coração.
No momento, a única coisa a respeito da qual se tem certeza é que as células-tronco de origem embrionária conseguem diferenciar-se em todos os tecidos do organismo.

Células-tronco no cordão umbilical

Drauzio – Estou insistindo nisso, porque constitui um ponto crucial do debate que se estabeleceu sobre as células-tronco, essas totipotentes que podem diferenciar-se em qualquer tecido e têm de ser buscadas nas primeiras fases de desenvolvimento do embrião. Se pudermos obter as células pluripotentes que persistem na vida adulta, parte do problema estaria resolvida.
Mayana Zatz – Esse é um ponto crucial, especialmente se considerarmos que o cordão umbilical, fonte de células-tronco melhor do que a medula espinhal, vai para o lixo quando o bebê nasce. Por isso, estamos brigando para que se façam bancos públicos de cordões umbilicais, apesar de não sabermos se as células-tronco neles existentes têm mesmo a capacidade de diferenciar-se em outros tecidos e, caso tenham, em que tecidos poderão diferenciar-se.
No entanto, como já não se discute mais que o cordão umbilical é a melhor fonte células para tratamento da leucemia e de inúmeras outras doenças hematológicas e como se estima em praticamente 100% a chance de encontrar uma amostra compatível num grupo de dez a doze mil amostras de cordões, a criação desse banco estaria plenamente justificada.

Drauzio – Como funcionariam esses bancos de cordão umbilical?
Mayana Zatz – Quando uma pessoa tem leucemia, é preciso procurar um doador compatível e se tenta achá-lo na família do doente, por exemplo, numa irmã ou num primo que possa doar a medula óssea. Às vezes, o paciente tem a sorte de conseguir; às vezes, não e entra numa fila à espera desse doador compatível, um adulto que esteja disposto a doar sua medula.
Imagine, porém, que existam bancos de cordão umbilical com células-tronco boas para o tratamento da leucemia. Se houver 12 mil, 15 mil amostras, certamente será encontrada uma compatível, o que tornará desnecessária a procura de um parente para doação. O processo é semelhante ao dos bancos de sangue, com a diferença de que o sangue tem menos combinações possíveis.

Mistério da diferenciação

Drauzio – Vamos imaginar que por alguma razão, experimento científico ou tentativa de tratamento de uma doença, seja necessário colher essas células totipotentes que são capazes de diferenciar-se em qualquer tecido. O potencial teórico de possibilidades de tratamentos com essas células é tão variado que, pessoalmente, não consigo sequer enxergar seus limites. Você poderia explicar como essas células retiradas do embrião se transformariam em tratamento para as mais diversas doenças?
Mayana Zatz – É preciso deixar o embrião chegar à fase de blastocisto, isto é, com 64 células, o que leva no máximo cinco dias. É fundamental deixar claro o processo para as pessoas entenderem o que pretendemos.
O blastocisto é um montinho de células menor do que a ponta de uma agulha, e ninguém está pensando em destruir embriões, muito menos fetos. A idéia é cultivar essas células em laboratório de maneira que se diferenciem no tecido desejado.
O corpo humano, porém, guarda um mistério que ainda não foi decifrado. Como se sabe, depois da fecundação, a célula se divide em duas, de duas em quatro, de quatro em oito e assim sucessivamente até atingir a fase de algumas centenas de células com o poder de diferenciar-se em qualquer tecido. No entanto, em determinado momento, elas recebem uma ordem e umas se diferenciam em fígado, outras em ossos, sangue ou músculo, por exemplo. Daí em diante, todas as suas descendentes, de acordo com essa mesma ordem, continuarão diferenciadas: a célula do fígado só vai dar origem a células do fígado; a do sangue, só a células do sangue. Não descobrimos, ainda, como funciona essa ordem que a célula recebe para diferenciar-se nos diferentes tecidos.
Em nossas pesquisas, estamos utilizando células-tronco do cordão umbilical e cultivando-as junto com células musculares. Como trabalho com doenças neuromusculares, quero que elas se diferenciem em músculo.

Drauzio – Como está sendo desenvolvida essa pesquisa?
Mayana Zatz – Na verdade, estamos fazendo duas pesquisas. Uma estudando só os resultados do contato, da vizinhança entre a célula-tronco e a célula muscular. A segunda, cultivando a célula muscular e utilizando o meio de cultura para colocar a célula-tronco ainda indiferenciada a fim de verificar se naquele meio existem os fatores necessários para sua diferenciação em célula muscular.
Como já disse, meu interesse nesse tipo de célula vem do meu trabalho com doenças neuromusculares. Há pessoas que nascem normais, mas a partir de determinada idade começam a perder musculatura por defeito do músculo ou dos nervos que deveriam estar enervando aquele músculo. Nas formas mais graves, a doença acomete meninos de 10, 12 anos que perderam a massa muscular e estão numa cadeira de rodas. Nosso objetivo com a pesquisa é, a partir de células-tronco, tentar substituir o tecido muscular que está se perdendo, o que de certa forma é uma maneira sofisticada de se fazer um transplante.

Drauzio – Você tem feito isso a partir de células colhidas do cordão umbilical?
Mayana Zatz – Essas são as únicas células que posso conseguir. Infelizmente, a lei não permite o trabalho com células embrionárias.

Reação paradoxal

Drauzio
– Quero discutir esse ponto porque raras áreas da ciência criaram dificuldade tão grande de comunicação com a sociedade como essa do trabalho com células-tronco, justamente porque, para obter células totipotentes, é preciso fecundar um óvulo (o que é feito “in-vitro”, não dentro do útero materno) e esperar multiplicar algumas vezes para obter a célula-tronco. Isso criou um debate, a meu ver descabido, que é o debate do abortamento, como se estivesse sendo feito um pequeno abortamento “in-vitro”.
Ora, se pegarmos um adolescente que foi parar num hospital depois de um acidente de moto e através de vários exames for constatada sua morte cerebral, se a família estiver de acordo, estamos autorizados a retirar o coração e outros órgãos para transplantá-los numa pessoa que precise. A sociedade não só aceita esse ato da medicina como o considera louvável. No entanto, qual foi o princípio que orientou esse procedimento? O sistema nervoso tinha deixado de funcionar, não havia mais condição humana e a vida era apenas vegetativa. Agora, se pegarmos um óvulo, esperarmos que se multiplique em poucas células, nas quais não existe o menor esboço de sistema nervoso central, considerar isso um atentado contra a vida não parece, no mínimo, uma coisa do outro mundo?
Mayana Zatz – Acho que é uma coisa do outro mundo e que existe muito desentendimento e desinformação, porque a proposta é usar os embriões que sobram nas clínicas de fertilização e vão para o lixo.
Veja o que acontece. O casal tem um problema de fertilidade, procura um centro de fertilidade assistida, juntam-se o óvulo e o espermatozóide e formam-se os embriões. Normalmente são dez, doze, quinze embriões, alguns de melhor qualidade, mas outros malformados que não teriam a capacidade de gerar uma vida se fossem implantados num útero e vão direto para o lixo. Esses embriões descartados serviriam como material de pesquisa para fazer a linhagem de células totipotentes.
A segunda hipótese refere-se aos casais que já implantaram os embriões, tiveram os filhos que queriam e não vão mais recorrer aos embriões de boa qualidade que permanecerão congelados por anos até serem definitivamente descartados.

Drauzio – E esses também vão morrer…
Mayana Zatz – Esses embriões têm potencial de vida baixíssimo. Muitos teriam potencial zero mesmo que fossem implantados. No entanto, sabe-se que não serão aproveitados e que, um dia, também serão jogados no lixo.
Por incrível que possa parecer, quando se discute a utilização desses embriões, o que mais se ouve dizer é que estamos destruindo vidas. Na verdade, se há alguma destruição é a das pessoas com doenças letais que estão perdendo a possibilidade de serem tratadas a partir de células-tronco embrionárias. Embora não se possa afirmar ainda que esse tratamento exista, segundo tudo indica, é enorme potencial que elas oferecem para consegui-lo.

Contra a vida

Drauzio – Você não acha que os indivíduos que se opõem a esse tipo de pesquisa em nome de uma pretensa defesa da integridade da vida, na verdade estão agindo contra a vida porque impedem que pessoas, estas sim vivas, tenham condições de defender-se de doenças gravíssimas, como essa a que você se referiu?
Mayana Zatz – Sem dúvida. Quem proíbe esse tipo de pesquisa é contra a vida. Eu queria ver se alguém com o filho na cadeira de rodas, sabendo que ele está condenado, teria a coragem de olhar nos olhos dessa criança e dizer: “Olha, o embrião congelado é mais importante do que a tua vida!”
Por isso, defendo que é preciso ouvir as pessoas portadoras dessas doenças, porque representam um drama enorme que a população desconhece. Quando se fala em tratamento, em geral se pensa em Parkinson e Alzheimer, doenças extremamente importantes, mas que acometem pessoas mais velhas. O drama maior enfrentam as crianças e jovens que estão morrendo e das quais se está tirando a única esperança de tratamento.

Drauzio – Considerar que um óvulo fecundado por um espermatozóide num tubo de ensaio, depois de três ou quatro divisões, é uma vida com o mesmo direito da criança que está na cadeira de rodas, sentindo-se cada vez mais incapacitada, é revoltante. Nesse caso, não seria exagero encarar a masturbação masculina como um genocídio em potencial.
Mayana Zatz – Nesse sentido, toda a vez que a mulher menstrua também perde a chance de ter um óvulo fecundado e está desperdiçando uma vida naquele momento.
=================================

Mayana Zatz é professora de Genética Humana e Médica do Departamento de Biologia, Instituto de Biociências da Universidade São Paulo, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano – IB -, presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular e membro da Academia Brasileira de Ciências.

Enviado por Francisco Nanziozeno Paiva

Para Saber Mais:

0 comentários: